Biographica

EXPOSIÇÕES


Cláudia Linhares Sanz
No fundo, pode-se dizer que o colecionador vive um pedaço de vida onírica. Pois também o ritmo da percepção e da experiência modificou-se de tal maneira que tudo – mesmo o que é aparentemente mais neutro – vai de encontro a nós, nos concerne.
Walter Benjamin (passagens: 240)
Por onde se inicia o jogo que Bel pedrosa nos propõe? Sua coleção de pequenos pedaços do mundo nos faz percorrer múltiplos itinerários: não sabemos ao certo por onde é dada a partida; somos, no entanto, levados pelos movimentos das imagens, vetores que direcionam nosso olhar, setas apressadas, cortes diagonais desviantes; círculos às vezes vagarosos, outras, apressados. A cada lance, é possível reiniciar a jogada, começar talvez pelo meio do tabuleiro: e se o olho agora andasse por outra direção, e se brincássemos num zigue-zague, e se recomeçássemos dessa vez de trás pra frente? Onde parar? Quando cessar o trânsito? Uma olhadela seria suficiente para ver seus tabuleiros ou a singularidade de seus diagramas surge na duração que cada jogada permite? Um mapa do mundo dos detalhes: despercebidos, discretos, inexpressivos, tocam, nas imagens de Bel Pedrosa, uma espécie de partitura secreta. Mapas de pequenos enigmas.
Na pluralidade de cada tela e na coerência de sua série, há movimentos coexistentes de expansão e retração; aparição e desaparecimento. Aparece, por exemplo, a história da fotografia; revela-se toda uma tradição de fotógrafos que se ergueu no prazer dos cortes afiados, na captura de detalhes, no encontro com o minúsculo, no acolhimento dos vestígios, nas colagens de composições construtivistas. No entanto, também nelas essa tradição fotográfica desaparece, se reinventa, torna-se profundamente contemporânea.
Pois do mesmo modo o mundo aparece nas imagens de Bel Pedrosa, para simultaneamente desaparecer. Surgem pedaços, indícios, texturas e traços da urbe humana. Detalhes de um ambiente que reconhecemos e que, provavelmente sem grande esforço, podemos a ele restituir; devolver o que a artista subtraiu. Fazemos, então, o itinerário de volta, da fotografia exposta ao mundo em que vivemos, às avenidas por que passamos, ao sinais em que nos demoramos, às faixas de pedestres que atravessamos. E vemos o que antes não poderia ser visto. Nesse movimento, emerge a cidade gráfica dos pequeno orifícios, das coisas que passam despercebidas de tão familiares que nos são. Lembramos daquelas situações em que certos objetos foram (misteriosamente) ao nosso encontro e passaram a nos dizer respeito. Uma maçaneta enferrujada, um bueiro antigo, uma risco na parede. Revivemos, nas imagens de Bel Pedrosa, aquele breve privilégio que experimentamos quando somos convidados pelos objetos inanimados a flertar com eles. E sentimos significativa solenidade ao perceber de forma lúcida o banal. Como se, por breves instantes, surgisse enorme empatia entre nós e o mundo das coisas. De repente, o imperceptível, antes indiferente, antes apenas objeto, é dotado de olhar. Olhos que exigem um compromisso silencioso: existimos todos, atravessamos a história.
Pois assim o trabalho de Bel Pedrosa nos faz lembrar os momentos raros em que as coisas sem vida vivem. Quando, então, são capazes de abrir vertiginosamente nossa experiência. Desviados de nosso curso diário, provavelmente como a artista o fez, passamos a namorar aquela mancha suja da tinta gasta no asfalto. Somos imediatamente tomados por uma reflexividade – algo que nos distingue dos hábitos cotidianos, de nossa ações automatizadas. Uma certa desordem nos ocupa, mas também uma extrema capacidade perceptiva. Nos damos conta de todos aqueles olhares que os objetos do mundo real, um dia, nos destinaram. Curioso, entretanto, o movimento de aparição e desaparecimento que seu trabalho opera faz esse mundo, repleto de olhos, também desaparecer. Se o mundo ecoa em suas partituras, simultaneamente, silencia, posto que no mapa de seus tabuleiros o percurso não nos leva inteiramente de volta a ele, não o restituímos por inteiro a cidade, inventamos uma nova. Cada peça do tabuleiro, cada mapa de sua colagem efetiva, finalmente, profunda autonomia.
Por isso, enigmas.

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